quinta-feira, 14 de julho de 2011

Os filhos esquecidos de uma outra Europa

Depois de um grande recesso sem postar nada, retorno para publicar meu ultimo artigo, um desmembramento do meu trabalho de conclusão de curso. Agradeço a todos que tem colaborado para uma história cultural da civilização islâmica e todos os outros temas que vêm sendo dissecados por esta fantástica ferramenta de analise da História!



Os filhos esquecidos de uma outra Europa: Representações do homem caucasiano na obra Khadji-Murát de Liev Tolstoi

Radamés Rodrigues Neto[1]
Resumo: O presente trabalho constitui-se num esforço de retratar a relação entre o Islam e a Europa através do romance Khadji-Murát de Liev Tolstoi. Buscamos através da analise de algumas partes do texto e das discussões mais recentes da história cultural no campo da relação entre História e Literatura buscar subsídios para entender essas relações.

Palavras-chave: História Cultural, Literatura, Islam, Europa.

Introdução.
Os gigantes que assolavam a vida do infante Dom Quixote podem revelar algo sobre nós mesmos e nosso passado ou eram apenas moinhos, frutos do abstratismo de Cervantes?  A viagem de Ulisses tão longa quanto perigosa é um retrato de uma sociedade que já pressentia a necessidade de expandir-se através de um domínio marítimo ou apenas uma descrição fantasiosa dos locais por onde Homero – ou todos os aedos que ajudaram a compor esta narrativa – esteve?
A plena elucidação de indagações, a primeira vista, bastante estranhas como estas tem sido o esforço – quando não o pesadelo – de muitos historiadores, filólogos, literatos, sociólogos, filósofos entre outros. Varias hipóteses tem sido cogitadas e a fragmentação de opiniões não tardou em aparecer.
            A própria disciplina História, desenvolveu muito do seu potencial atual na boleia de discussões como esta, no entanto é preciso ter em mente a complexidade e a multiplicidade de fatores que tais indagações necessitam. Evidentemente não teríamos espaço aqui para nos ater a uma questão tão longa e complexa. No entanto, de alguma forma as indagações deste primeiro parágrafo constituem as “conexões ocultas” do presente trabalho e refletem também o momento histórico de produção do mesmo.

Em vias mais gerais e objetivas, este trabalho possui um duplo objetivo: Este se propõem a apresentar um panorama do dialogo entre a História e a Literatura através da ótica da História Cultural. Para tanto, nos utilizamos de uma revisão historiográfica para nos auxiliar na reflexão sobre alguns pontos específicos de aproximação e distanciamento entre ambas as disciplinas.
No entanto, falar da aproximação destas disciplinas pressupõe um distanciamento anterior do qual é preciso ter em mente. Este distanciamento, bem como essa nova era nos estudos culturais necessitam de uma primeira reflexão acerca de “quais passos a História deu até chegar neste estado de coisas”, o qual mesmo não se constituindo em um objetivo do trabalho – inevitavelmente – deve ser abordado.
Nosso segundo objetivo, que via de regra é a espinha dorsal desse trabalho, também é influenciado pela abordagem cultural da História, mas a principio, pouco tem haver com o propósito de estudo acima citado. Buscamos nas reflexões entre História e Literatura subsídios para pensarmos o modo de vida das comunidades indígenas[2] muçulmanas da Europa, destacadamente os grupos que habitam as cadeias de montanhas conhecida como Cáucaso.
Para tanto elegemos um dos expressivos e polêmicos autores da literatura mundial para podermos perceber de maneira mais substancial as relações entre o Islam e a Europa. O autor em questão é Tolstoi, celebre literato que impressionou o mundo com romances de máxima grandeza como Guerra e Paz e Anna Karenina, mas também devido as suas idéias de caráter religioso, pacifista e sua luta social em torno do direito dos camponeses.
            Tolstoi é autor da obra intitulada Khadji-Murát, de publicação póstuma, ou seja após 1910, apesar de não ter um impacto significativo na literatura mundial e não fulgurar como um ponto central dentro do estudo das obras de Tolstoi, a mesma, tem para nós um caráter central pelo seu tema e titulo. Khadji Murát foi um dos resistentes caucasianos a dominação russa, que aliou-se aos russos depois de desentendimentos com a liderança caucasiana.
Vendo que os russos não estavam realmente dispostos a lhe ajudar a recuperar sua família que esta em poder dos resistentes, Murát resolve abandonar os russos e fazer justiça por conta própria. Os russos tomam aquele ato de Murát como uma deserção e o perseguem, cercado com um pequeno grupo de seguidores, mas sem jamais entregar-se, Murát é morto e sua cabeça cortada, tratada como um troféu.
Usando-se desta história trágica tentamos levantar vozes de personagens e refletir sobre passagens que nos auxiliem na compreensão do momento histórico do colonialismo e sobre as relações que se estabelecem entre muçulmanos e não-muçulmanos na Europa. Apesar de a obra tratar especificamente de dois grupos étnicos que professam a fé muçulmana – tchetchenos e daguestaneses – essa relação de poder poderia ser pensada pela ótica de muitos outros povos muçulmanos da Europa, tais como bósnios, albaneses, kosovares, entre outros.
Contudo, o maior objetivo que este artigo propõe-se é o de pensar esta relação através de uma ótica cultural fugindo dos antigos esquemas político-econômicos que desgraçadamente vem se “encerrando em si mesmos” no discurso de muitos historiadores até os dias atuais.  Para tal emprego que envolve temas tão complexos como Cultura, Literatura e Islam acreditamos ser de grande valia algumas reflexões de Edward Said em seu clássico Orientalismo: o Oriente como invenção do Ocidente e das reflexões sobre o conceito de “nobre selvagem” na obra de Hayden

História & Literatura a atualidade de uma antiga parceria.

Falar de um diálogo entre História e Literatura – ou uma retomada deste diálogo – sem falar do século XX, é uma tarefa pueril. A História do breve século XX de Hobsbawm, com suas intermináveis guerras e frágeis instituições sociais que fazem dele um “breve século[3]”, além de sua busca por uma – ou algumas – identidade coletiva ultrapassa o caráter político-econômico e chega as bases fundamentais da civilização ocidental.
Esses novos tempos trouxeram uma dinâmica evolutiva – em termos tecnológicos e em menor medida societários – rápida que subvertia a lógica temporal até então vivenciada pelos diversos grupos humanos. Tais mudanças ressonavam na forma como estas sociedades se concebiam dentro da estrutura temporal e, além disso, como explicar esses novos tempos.
A primeira exposição significativa de novos modelos de concepção da História só irão aparecer no final da década de 1920, com a fundação da revista Annales d’ histoire économique et sociale pelos jovens historiadores Marc Bloch e Lucien Fevbre[4]. Tanto a revista quanto a obra de seus fundadores e de alguns outros historiadores – notadamente os francófonos – estava mudando o rumo da História.
O principal objetivo deste trabalho era mostrar que apenas a História não poderia elucidar as camadas mais profundas das sociedades no intuito de dar um veredicto mais acertado sobre o que efetivamente teria ocorrido. Para tanto, pregavam os defensores da Escola do Annales, era necessário fazer contato com outras ciências sociais – destacadamente a economia – e partilhar de idéias que buscassem dar visibilidade a mais grupos sociais, o que sobremaneira exigia um novo modelo de se pensar a História.
Sem dúvida foi à ruptura com o positivismo de Bloch e Fevbre que possibilitaram a primeira transformação significativa do pensar a História. Porém, depois da Segunda Guerra Mundial, vai haver novos esforços de se pensar a História, paralelos a Escola dos Annales.
Destaca-se a Escola Marxista que via de regra vai dominar a produção historiográfica brasileira até a década de 90, isso pode ser demonstrado não somente pelo número de trabalhos monográficos na área, quanto pela quantidade de traduções de obras de seus ideólogos, notadamente os da corrente Neo Marxista Inglesa. Esta corrente vai ser o mais difundido método de se pensar a História durante a guerra fria, mesmo com o avanço do estruturalismo, e o tímido crescimento dos intelectuais que compõem o que conhecemos como pós-modernismo.
Nesse contexto de florescimento de idéias o que é importante notar é que havia um cenário político e social que propiciava o que ficou conhecido com a “crise dos paradigmas”. Nesta crise as antigas formas de analise dos fatos e contextos históricos não conseguiam mais explicar as realidades históricas devido à emersão de novos grupos e novas questões na elucidação do passado.[5]
Nesse contexto de emergência de abordagens mais comprometidas com o ideal de pluralidade que o conceito de História – pelo menos o atual pós era das Histórias Nacionais – recebe, é que “re”-surge a História Cultural. Ressurge, porque na verdade a História Cultural já era praticada desde o século XVIII[6], porém desta vez ela toma não mais o lugar de história da cultura erudita, ou história da arte, mas desloca o olhar dos historiadores para que os vários entendimentos do termo cultura estejam presentes no processo de elucidação das camadas da realidade.
Esta foi à grande mudança paradigmática da História, ao dar espaço a novas interpretações que partem do sujeito e não mais de fatores societários que regulam a vida dos agentes históricos. Sobre esta nova forma de pensar a História, que ficou conhecida como Nova História Cultural, a Professora Sandra Jatahy Pesavento aponta que:
Se a História Cultural é chamada de Nova História Cultural, como o faz Lynn Hunt, é porque está dando a ver uma nova forma de a História trabalhar a cultura. Não se trata de fazer uma História do Pensamento ou de uma História Intelectual, ou ainda mesmo de pensar uma História da Cultura nos velhos moldes, a estudar as grandes correntes de idéias e seus nomes mais expressivos. Trata-se, antes de tudo, de pensar a cultura como um conjunto de significados partilhados e construídos pelos homens para explicar o mundo.[7]
Se pensarmos cronologicamente, este novo conceito de História Cultural assistiu um progresso extraordinário desde o Renascimento Italiano de Jacob Burckhardt até a Cultura Popular Européia de Peter Burke e, mesmo, desta as mais recentes publicações. Temos sido agraciados com excelentes trabalhos na área da cultura em geral, e das relações entre história e literatura – que é foco do presente trabalho – e da história social da arte.
Quando enfatizo isto, quero frisar duas coisas. Primeiramente que a narrativa literária é realmente, ou primeiramente uma manifestação artística. Artística, pois a literatura apresenta em seu processo constituinte o intuito de humanização e, para tanto, a literatura possui uma preocupação fundamental com a estética.
Esta estética textual dividida em padrões, ferramentas e correntes, constituem o interesse principal de estudos das ciências da literatura. E é neste ponto que ambas as disciplinas – História e Literatura – parecem a principio se distanciarem.
No entanto, de maneira não tão acentuada, a História possui também uma preocupação com a estética. Não é de se estranhar o grande número de obras que abordam especificamente a questão da narrativa histórica, ou melhor, as transformações que a mesma sofreu mudando o foco de interesse e adicionando novos cenários e personagens para auxiliar numa compreensão mais ampla dos processos históricos.
Esta focalização distinta que as disciplinas possuem pode ser retratada a partir de uma fala de Hans Robert Jauss. Quando este reflete acerca do interesse fundamental dos historiadores. Jauss nos aponta que:
[...] o historiador costuma, antes, apoiar-se no ideal de objetividade da historiografia, à qual cabe apenas descrever como as coisas efetivamente aconteceram. Sua abstinência estética funda-se em boas razões. Afinal, a qualidade e a categoria de uma obra literária não resultam nem das condições históricas ou biográficas de seu nascimento, nem tão-somente de seu posicionamento no contexto sucessório do desenvolvimento de um gênero, mas sim dos critérios da recepção, do efeito produzido pela obra e de sua fama junto à posteridade, critérios estes de mais difícil apreensão.[8] 

Essa “re”-significação dos agentes e dos cenários históricos é produto direto do arrojo narrativo aliado – evidentemente – ao amadurecimento da Filosofia da História. Isto mostra que apesar de partilhar de uma preocupação textual, o conteúdo dessa preocupação é em essência distinto ao que os literatos praticam. Apesar de haver nos dias atuais cada vez mais discussões sobre novas técnicas mais “literárias”, – principalmente para uma leitura mais fluídica da narrativa – isso não significa que a História tenha recebido a licença poética da qual desfrutam os literatos.
A segunda peculiaridade que distingue as disciplinas é a própria finalidade de ambas. Enquanto a História preocupa-se em construir seu discurso pautado em fatos que ocorreram, mesmo havendo inúmeras interpretações acerca de um único fato, a Literatura não compartilha dessa preocupação.
De uma maneira geral a ficcionalidade da literatura é mais um pesadelo para os historiadores de correntes mais tradicionais que não conseguem ainda conceber a multiplicidade de fontes que a disciplina Histórica vem nos agraciando. A História Cultural nesse sentido tem dado um grande avanço, ao considerar a não somente os fatos, personagens, conjunturas e estruturas, mas principalmente, as representações dos mesmos.
O sentido representativo inscrito dentro da disciplina da Literatura é tão vivido e cheio de cores como os métodos utilizados por historiadores e em alguns casos estes artifícios literários possibilitam uma leitura do mundo mais completa. Esta aparente falta de comprometimento com o real que era um dos principais pontos de criticas a este dialogo vem se mostrando um argumento arcaico.
Nas fontes documentais esse artifício representativo da realidade é bastante prejudicado, pois na Literatura, esta impressa à opinião direta de alguém que vivia aquele período e compôs a seu modo uma interpretação da realidade. Evidentemente, os documentos também demonstram uma interpretação da realidade, mas nos documentos oficiais os agentes são destituídos de sua identidade primaria, e sedem a uma identidade coletiva.
Sendo assim, não há mais um locutor primário dos acontecimentos ou das praticas daquela sociedade, o que existe é uma soma de identidades que renegam sua individualidade a favor de um status superior, a identidade coletiva que a sociedade propicia. Enquanto que na Literatura o autor não renega sua existência em favor de uma sociedade – na maioria das vezes a obra serve mais como critica, do que como exortação social – e mais, ele esta sempre presente, seja através dos personagens, seja através do narrador e da própria trama.
Toda esta exposição até aqui pode ser sintetizada parafraseando Sandra Jatahy Pesavento quando ela declara: “Clio e Calíope participam da criação do mundo, como narrativas que falam do acontecido e do não-acontecido, tendo a realidade como referente a confirmar, a negar, a ultrapassar, a deformar.”[9].
São estas as barreiras impostas ao ofício do historiador: conseguir captar no discurso literário aquilo que este possa possuir de realidade, realidade esta, que existe nas entrelinhas de um discurso que por definição – literário – não tem nenhum compromisso objetivo com a realidade, mas que, no entanto, pode-se fazer valer de lugares, fatos e pessoas transpostas da realidade objetiva, para um campo mais vasto de possibilidades dessa mesma realidade objetiva, tendo o discurso como fio condutor entre a realidade expressa – sempre subjetivamente e, às vezes, subliminarmente – e as posições e leituras de mundo que os personagens fazem. Dessa forma encontramos um duplo esforço dentro do labor intelectual, primeiramente o de identificar o real e o fictício no discurso literário e, em seguida, contextualizar com a realidade daqueles que o leram, sabendo que estes estão sempre afetados pela visão de mundo de sua época.

Quando o real e o fictício se mesclam, a Europa em relance.

A distinção até agora ilustrada entre História e Literatura aponta para uma possibilidade metodológica do uso da narrativa literária como fonte histórica. Até o presente momento, vários trabalhos têm obtido extraordinário êxito ao adicionar em sua analise ou ter como base certos romances literários na tentativa de acessar panoramas mais completos de determinados períodos históricos.
Podemos destacar – apenas para ilustrar nossa afirmação – obras de renomados historiadores brasileiros que se dedicaram em suas pesquisas ao caráter social da literatura, entre eles há nomes como Nicolau Sevcenko, Sidney Chaloub e Sandra Jatahy Pesavento, entre muitos outros. Estes historiadores trabalharam com uma vasta gama de temas e de momentos históricos distintos se formos comparar suas produções.
Entretanto, ainda de maneira bastante tímida, esta abordagem da História – História Cultural – tem pecado por não ter se interessado ainda por questões que fujam de uma abordagem eurocêntrica. Em língua portuguesa ainda faltam títulos que demonstrem as relações culturais entre a Europa e o Oriente.
Pretendo aqui refletir sobre alguns pontos da representação das populações montanhesas do Cáucaso na obra Khadji-Murát de Liev Tolstoi. Buscando nos parágrafos que se seguem refletir sobre a presença Islâmica na Europa correlacionando-a com algumas passagens da referida obra.
Um grande número de obras literárias, principalmente as compostas durante o século XIX, possuem temáticas relacionadas ao Oriente. Isto é resultado direto do expansionismo europeu e suas fases, Colonial e Imperial.
A aventura é um elemento central desses romances, aonde na maioria das vezes um explorador vindo da Europa, se depara com uma sociedade que cultiva valores, normas e leis muito distintas da sua. Na maioria dos casos este estranhamento cultural é explorado a partir da idéia de justiça, porém nunca levando em consideração as formas distintas de se conceber a justiça.
A Europa via suas colônias sob o domínio de ingleses, franceses – em maior medida –, portugueses, espanhóis, holandeses, alemães, russos – em menor escala – como sendo terras exóticas e desprovidas de civilidade. Não é de se estranhar que esta idéia preconceituosa sobre o outro tenha sido usado pela literatura na composição de narrativas que demonstrassem alguns dos dilemas do homem europeu do século XIX.
Este é um elemento presente na obra Khadji-Murát e na qual Tolstoi escreve com certa propriedade de causa, pois o jovem Tolstoi fora recruta do Império Russo e lutou contra os montanheses rebeldes do Cáucaso e contra as forças do Sultão Otomano na Criméia, o que o ajudou a inspirar-se para compor o romance Khadji-Murát. As motivações que o levaram a compor este romance, que é o ultimo trabalho de Tolstoi também passam por sua renovação ideológica baseada numa bastante particular interpretação do cristianismo.
Edward Said, o critico literário palestino que compôs uma das obras de analise mais abrangentes sobre o Oriente nos mostra como esse estranhamento age nas mentes dos ocidentais. Said nos aponta que:
O Oriente era praticamente uma invenção européia e fora desde a Antiguidade um lugar de episódios romanescos, seres exóticos, lembranças e paisagens encantadas, experiências extraordinárias.[10]

A passagem acima ilustra a idéia de Oriente partilhada pela maioria dos europeus, essa terra exótica que serviu como espelho invertido – muitas vezes – das frustrações do homem europeu. Assim também a figura de Khadji-Murát se apresenta na obra de Tolstoi, um chefe tribal de comportamento austero que mescla o impacto cultural do diferente com a sutileza e “bons modos”.
Em muitas passagens esta afirmação pode ser verificada, no que parece ter sido propositalmente criado para causar um impacto no leitor. Durante todo o romance, as características psicológicas de Murát distinguem-se radicalmente das características dos outros personagens, indiscutivelmente, quando se compara com as representações dos personagens russos.
O inicio do capitulo dez se passa no gabinete do príncipe Vorontzóv, o chefe militar da missão no Cáucaso, parece ser mais um dia típico onde o príncipe cumpre com as formalidades e recebe as pessoas que solicitam uma audiência com o mesmo. Na sala de espera a uma infinidade de personagens distintos, um cã – chefe tribal local – oficiais do exercito, um monarca georgiano, um empresário armênio.
Tudo a principio parece normal, sem tumultos ou nada de especial, até que repentinamente adentra a sala ninguém menos que Khadji-Murát. Selecionamos a passagem que retrata esta entrada para mostrar o estranhamento – leia-se choque cultural – que o líder caucasiano gerou.
Quando, no dia seguinte, Khadji-Murát foi a presença de Vorontzóv, a sala de espera estava cheia de gente [...] Quando Khadji- Murát entrou na sala de espera, com passo decidido, mancando ligeiramente, todos os olhares se dirigiram para ele, que pode ouvir o seu nome murmurado em diferentes cantos da sala. Trajava uma cumprida tcherkeska branca, sobre biechmiét castanho, com passamanes prateados na gola, e estava calçado com perneiras pretas e sapatos de pano da mesma cor, que lhes revestia os pés como luvas. Estava de papakha com turbante, a mesma por causa da qual, por denuncia de Akhmet-cã, ele fora preso pelo general Klügenau, o que provocara a sua adesão a Chamil. Khadji-Murát caminhou apressado pelo parquete da sala de espera, balançando todo o seu corpo esguio, por causa daquele seu manquejar ligeiro sobre uma perna mais curta que a outra. Os olhos, desmensuradamente arregalados, dirigiam-se tranqüilos para a frente e pareciam não ver ninguém. O bonito ajudante de ordens cumprimentou-lhe e pediu-lhe que se sentasse, enquanto ia comunicar a sua chegada ao príncipe. Mas Khadji-Murát se recusou a sentar-se e permaneceu de pé, a mão metida atrás do punhal e um pé recuado, examinando com desdém todos os presentes.[11] 
                                              
            Observamos que a figura de Murát causava temor e curiosidade, a reação dos presentes fora pensada para evidenciar um potencial caráter de diferenciação entre as duas entidades ali representadas. De um lado existia todos os personagens que mesmo etnicamente variados – russos, armênios, georgianos – faziam parte do Império Russo e portavam-se dentro de “etiquetas ocidentais”, do outro lado a figura misteriosa, ressabiada e austera de Murát que mesmo mancando impõe-se resoluto naquele ambiente. 
Tolstoi criou um modelo de homem para retratar Murát, um modelo de homem que assemelha-se ao nobre selvagem, pois, mostra-se supostamente mais culto e educado que seus anfitriões russos. Esse modelo de personalidade é ao mesmo tempo um ato de descontinuidade literária, tendo em mente que esta mentalidade de suposta nobreza do selvagem – no caso russo – vem da poesia, entre outras, a de Lermotov.
Trabalhando com a representação midiática do conflito checheno, o professor Harsha Ram da universidade de Berkeley nos mostra como o mecanismo do Nobre Selvagem foi utilizada na literatura russa, ele nos aponta que:


É assim evidente que o discurso da literatura russa sobre a Tchetchênia não tem formato rígido em suas assertivas hierárquicas. Na verdade, estes termos podem ser - e foram - facilmente invertidos. A reversão mais característica envolve a transformação do homem selvagem em O Nobre Selvagem. [...] A "ficção" do Nobre Selvagem é essencialmente alegórica. Derivando das virtudes da natureza que antes eram consideradas sinais de atraso, o Bom Selvagem serve como um contraste positivo para as normas coercitivas da civilização européia. Sua resistência não é mais um sinal de selvageria, mas uma função crítica, como uma valorização frente ao risco de ser pisoteado na marcha do progresso.[12]


Essa nobreza selvagem também decorre de um sentido de justiça que é particular a cada um dos grupos, sendo muitas vezes conflitante em essência devido à oposição no modo de interpretar o sentido da existência. Lermotov foi o primeiro a atentar para a oposição entre modelos de justiça, quando focalizou o Adat – código de leis caucasiano anterior ao Islã – e a própria Sharia – o código de leis islâmico baseado no Alcorão e na tradição do profeta – como conceitos de justiça que retiravam aqueles seres da condição de selvagens sem organização estatal e viventes de um sistema anárquico.[13]
            É preciso ter em mente que a focalização destes indivíduos dentro do prisma de “selvagens” ocorre por uma necessidade fundamental das civilizações de se auto-afirmar de modo a negar o direito à existência de suas equivalências. Essa questão não pode ser vista apenas pelo ponto de vista político ou econômico, pois em essência as motivações que levaram os estados europeus a expandirem-se esta também associado a uma problemática de cunho filosófica.
Religião e Cultura foram discursos legitimadores para que a Europa lançasse mãos em um esforço de instituir um modo de vida mais “harmônico” fora do campo de abrangência que o Helenismo, a tradição Judaico-Cristã ocidental e o Iluminismo alcançavam. É nesse contexto que surgem os discursos legitimadores da dominação, seja ele com o intuito de “salvar”, “recuperar” ou “desenvolver” certas regiões fora de seu domínio bélico e cultural.
            Essa noção de “selvagem” é apontada por Hayden White em algumas de suas obras, destacamos aqui suas idéias sobre nobre selvagem em seu livro Trópicos do Discurso: Ensaios sobre a crítica da cultura. White nos aponta que:
A noção de “estado selvagem” (wildness), ou, na sua forma latinizada, “selvageria”, faz parte de um conjunto de instrumentos culturalmente autolegitimadores que inclui, entre muitas outras, também as idéias de “loucura” e de “heresia”. Estes termos são utilizados não só para designar uma condição ou um estado de ser especifico, mas também para o confirmar o valor de suas antíteses dialéticas, “civilização”, “sanidade” e “ortodoxia”, respectivamente. Assim, não se referem tanto a uma coisa, lugar ou condição específicos, quanto ditam uma atitude particular que comanda uma relação entre uma realidade vivida e alguma área problemática da existência que não pode ser conciliada facilmente com as concepções convencionais do normal ou familiar.[14]

Tal noção acima citada não é apenas uma relação de poder estabelecida entre sociedades com níveis “técnico-administrativos” dispares – se analisarmos por uma visão eurocêntrica -, mas uma reprodução cultural de um estigma excludente. Dentro desse estigma se projetam todas as “imperfeições” que a sociedade gera em seus processos sociais e os quais se tornam em dado momento ou aquele que merece proteção ou – dicotomicamente falando – o inimigo na figura do “selvagem”, do “bestial” ou do “incivilizado”.
            O estado de “incivilidade” que fora inscrito pelos dominadores aos dominados geram com o tempo símbolos de resistência cultural.  Tais símbolos se processam em elementos aglutinadores da identidade coletiva que os grupos vão criando.
            Em Khadji-Murát, o símbolo escolhido por Tolstoi para retratar a violência da dominação russa foi a flor. Nesta passagem, que é aparece logo na primeira pagina do romance é o elo central de ligação do Tolstoi militante pacifista com a visão enaltecida do nobre selvagem.
Observemos no trecho abaixo como a flor metaforiza o homem caucasiano. Neste capitulo o próprio autor é protagonista, ele visualiza uma flor no jardim de sua propriedade e fica encantado com sua beleza. Porem quando vai retirá-la do solo, vê que aquela doce flor resiste a abandonar seu espaço e depois de grande esforço quando finalmente consegue retirar a flor esta se encontra despetalada, mutilada, sem vida. Em suas palavras Tolstoi narra:
Colhi um grande ramalhete de flores diversas, e ia para casa, quando notei, numa ravina, magnífica bardana carmesim em flor, daquela variedade que recebeu em nossa região o nome de “tártaro”, e que os ceifeiros sempre procuram cortar antes do centeio, mas, quando a misturam sem querer ao ceifado, atiram na fora para não se espetarem nos espinhos. Veio-me a ideia de cortar essa bardana e pô-la no centro do ramalhete. Desci para o fundo da ravina e, depois de expulsar um zangão cabeludo, que se cravara no centro da flor e nela adormecerá flácida e docemente, comecei a cortar a haste. Foi muito difícil: não só havia espinhos por todos os lados, que me picavam mesmo através do lenço em que enrolara a mão, mas também a haste era tão forte que lutei com ela uns cinco minutos, rompendo as fibras uma a uma. Quando, finalmente, arranquei a flor, a haste estava em frangalhos, e a primeira flor não parecia tão fresca e bonita. E o seu alambicado grosseiro não combinava com as flores delicadas do ramalhete. Lamentei o fato de ter destruído em vão a flor que era tão atraente em seu próprio lugar, e a joguei fora. “Mas que energia e que força vital” – pensei, lembrando-me dos esforços que me foram precisos para arrancar a flor. “Com que tenacidade ela se defendeu e como vendeu caro a vida!” [15]

A flor que vendeu caro sua vida[16] é na verdade o homem caucasiano que segue resignado sozinho uma guerra que teme não poder vencer. Nisto a flor é mais que uma simples alusão a paz, é antes de tudo, uma demonstração da noção de História que o romance nos traz.
Essa flor nos fala de um momento particular da História mundial, que em maior ou menor grau se processou em todos os cantos fora da Europa. O tártaro desenraizado em Iasna Poliana é um brado de Tolstoi que via em seu Djigit[17] (o audaz cavaleiro caucasiano) um símbolo de resistência e amor a terra natal, que ingleses e franceses também enfrentaram no Afeganistão, Argélia, Sudão, entre outros.
Esta flor é em suma a síntese do Oriente, esse local exótico, misterioso e que atrai tanto o fascínio quanto o desprezo dos ocidentais, justamente porque este – o Oriente – foi construído para ser o inimigo do Ocidente. Said nos mostra qual é o papel do Oriente na imaginação e na própria constituição do Ocidente:
O Oriente não é apenas adjacente a Europa; é também o lugar das maiores, mais ricas e mais antigas colônias européias, a fonte de suas civilizações e línguas, seu rival cultural e uma de suas imagens mais profundas e mais recorrentes do outro. Além disso, o Oriente ajudou a definir a Europa (ou o Ocidente) com sua imagem, idéia, personalidade, experiência contrastantes. Nada nesse oriente é meramente imaginativo. O Oriente é uma parte integrante da civilização e da cultura material européia.[18]

            Esta noção de Oriente foi de certo modo partilhada por Tolstoi na composição de seu personagem Khadji-Murát. Ao representá-lo, Tolstoi compõe um personagem que longe de ser o Khadji-Murát histórico, consegue aglutinar em sua personalidade um conceito.
            O conceito de homem caucasiano, aqui, tem o caráter de não russo e tendo sido a Rússia uma nação expansionista aos moldes do imperialismo europeu, esta adota uma postura de agressão e desrespeito a cultura e a violação das terras de povos que foram taxados de incivilizados. Alguns intelectuais europeus viram desde cedo que este novo universo trazia a tona um novo personagem social.
            Este personagem era o “nobre selvagem” ou aquele que destaca-se na luta contra a dominação e que se converte não somente em inimigo publico, mas em figura mitológica. O “nobre selvagem” é visto como aquele que não foi corrompido pela sociedade mesmo assim este não possui o signo civilizacional contido dentro do conceito de “europeu” e deve aceitar a dominação estrangeira como meio de “resgatá-lo” da incivilidade.
            A figura de Khadji-Murát no romance demonstra não somente o modo como Tolstoi pensava esse bandoleiro montanhês, mas como a Rússia do inicio do século XX se sentia com a seu estado expansionista. Murát era o cavaleiro ousado e ao mesmo tempo a bela flor, essa simbiose entre austeridade e sutileza que o Oriente – e o Islam – produzirá nas mentes dos europeus e que fora reproduzida através das artes e literatura ocidental.
           
Considerações finais.

A História vem nas ultimas décadas sendo agraciada com um grande numero de pesquisas inovadoras que demonstram um progresso significativo na concepção do uso de fontes, respeitando a sua multiplicidade e particularidade. As novas tendências historiográficas tem dado especial atenção para o uso destas novas fontes, repensando o status “uno” da fonte documental e abrindo-se para um novo leque de fontes e parcerias com outras áreas do saber.
            Isto só foi possível graças aos esforços de varias correntes teóricas que pensaram criticamente o fazer histórico durante o século XX. Suas contribuições foram muito significativas para o momento histórico que a disciplina História vem atravessando.
            O espaço aberto para as novas fontes que a História Cultural vem promovendo ajudou a História a reconciliar-se com antigos parceiros dentro das ciências humanas. Um destes parceiros é a Literatura que vem dando uma grande contribuição para pensarmos vários elementos dos distintos momentos históricos.
            Foi possível através deste dialogo entre História e Literatura analisar como o homem muçulmano da Europa era representado pela literatura ocidental. Khadji-Murát que é um romance pouco expressivo na vasta obra de Liev Tolstoi nos demonstra de maneira bastante significativa como o ocidente via o homem muçulmano dentro ou fora do que se convencionou chamar Europa.
            As relações estabelecidas no texto que é fruto da mistura entre as memórias de combate de Tolstoi com o seu ideal pacifista que ele adquiriu na maturidade compõem um personagem riquíssimo tanto no caráter estético quanto no seu valor histórico. Seu personagem semi-mítico demonstra todo uma situação de resistência cultural frente a um imperialismo que expropriava terras e silenciava culturas e modos de vida.
            O Djiguit de Tolstoi é um misto de cordialidade e apaixonada resignação que luta para manter a sua liberdade frente ao invasor russo. Esse invasor estava em praticamente todos os lugares fora da Europa Ocidental e dividia o mundo em colônias e zonas de influencia.
            Vemos como o caráter militante típico da fase madura de Tolstoi influencia o texto com metáforas que enriquecem a critica ao período vivido. Porem isto não salvou Tolstoi de representar seu Khadji-Murát com elementos do “nobre selvagem”, a figura estrangeira recorrente da literatura européia do século XVIII e XIX.
            Tal procedimento literário é na verdade uma forma preconceituosa de representar o outro através de premissas de despreparo, incivilidade e exotismo que corroboravam para os interesses imperiais em suas colônias. Esse modelo de homem selvagem que era dado aos não europeus de modo geral também foi muito útil para representar o mundo islâmico e sua cultura.
Uma conclusão que podemos tirar desse trabalho é que a pertinência da focalização nos aspectos culturais deve estar sempre em primeiro plano nas analises históricas. É imprescindível o uso de novas fontes e a busca por novos paradigmas explicativos da realidade histórica que consigam acessar camadas cada vez mais profundas das realidades históricas através de seus múltiplos aspectos e suas múltiplas fontes.

Bibliografia.

BURKE, Peter. O que é história cultural? Traduzido por Sérgio Goes de Paula. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005.

JAUSS, Hans Robert. A História da Literatura como provocação à Teoria Literária. São Paulo: Ed. Ática, 1994.

PESAVENTO, Sandra Jatahy. História e história cultural. 2. e.d. Belo Horizonte: Autêntica, 2005

RAM, Harsha. Prisoners of the Caucasus: Literary Myths and Media Representations of the Chechen Conflict. Disponível em: http://iseees.berkeley.edu/sites/default/files/u4/bps_/publications_/1999_01-ram.pdf. Acessado em: 13/5/2011 as 16:30hs.

SAID. Edward W. Orientalismo: O oriente como invenção do ocidente. Traduzido por Rosaura Eichenberg. São Paulo: Companhia das Letras, 2007

TÉTART, Philippe. Pequena História dos historiadores. Traduzido por Maria Leonor Loureiro. Bauru: EDUSC, 2000

TOLSTOI, Liev. Khadji-Murát. Traduzido por Boris Schnaiderman. São Paulo: Cosac Naify, 2009

WHITE, Hayden. Trópicos do Discurso: Ensaios sobre a crítica da cultura. Traduzido por Alípio Correia de Franca Neto. 2. ed. São Paulo: Edusp, 2001


[1] Graduado em História pela Universidade do Extremo Sul Catarinense (UNESC), e-mail para contato radames_historia@yahoo.com.br
[2] Aqui me refiro ao caráter vernáculo da palavra, os nativos, as populações históricas da região que em determinado momento aderem a determinados modelos societários ou ideológicos. 
[3] Hobsbawm entende que o século XX começa de fato em 1914 com a primeira guerra mundial e se estende até 1991 com o colapso da URSS Para uma melhor compreensão desse tópico ver: HOBSBAWM, Eric. A Era dos Extremos. Traduzido por Marcos Santarrita. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. Grifo Meu.
[4] TÉTART, Philippe. Pequena História dos historiadores. Traduzido por Maria Leonor Loureiro. Bauru: EDUSC, 2000, p. 108.
[5] PESAVENTO, Sandra Jatahy. História e história cultural. 2. e.d. Belo Horizonte: Autêntica, 2005, p.9.
[6] BURKE, Peter. O que é história cultural? Traduzido por Sérgio Goes de Paula. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005. p.15.
[7] Idem, p.15.
[8] JAUSS, Hans Robert. A História da Literatura como provocação à Teoria Literária. São Paulo: Ed. Ática, 1994. p. 7-8.
[9] PESAVENTO, Sandra Jatahy. História e história cultural. 2. e.d. Belo Horizonte: Autêntica, 2005, p.80.
[10] SAID. Edward W. Orientalismo: O oriente como invenção do ocidente. Traduzido por Rosaura Eichenberg. São Paulo: Companhia das Letras, 2007, p. 27.
[11] TOLSTOI, Liev. Khadji-Murát. Traduzido por Boris Schnaiderman. São Paulo: Cosac Naify, 2009. p. 93-94.
[12] RAM, Harsha. Prisoners of the Caucasus: Literary Myths and Media Representations of the Chechen Conflict. Disponível em: http://iseees.berkeley.edu/sites/default/files/u4/bps_/publications_/1999_01-ram.pdf. Acessado em: 13/5/2011 as 16:30hs. p. 6. Tradução Livre.
[13] Idem p.5.
[14] WHITE, Hayden. Trópicos do Discurso: Ensaios sobre a crítica da cultura. Traduzido por Alípio Correia de Franca Neto. 2. ed. São Paulo: Edusp, 2001. p. 170.
[15] TOLSTOI, Liev. Khadji-Murát. Traduzido por Boris Schnaiderman. São Paulo: Cosac Naify, 2009. p. 21-22.
[16] Ibidem. p.22.
[17] Ibidem. p. 221.
[18] SAID. Edward W. Orientalismo: O oriente como invenção do ocidente. Traduzido por Rosaura Eichenberg. São Paulo: Companhia das Letras, 2007, p. 27-28.

segunda-feira, 11 de julho de 2011

Marchando contra o esquecimento


Marchando contra o esquecimento: Srebrenica como uma ponte entre Ocidente e o Oriente

No décimo sexto aniversário do massacre de Srebrenica, eu resolvi escrever um pequeno texto em forma de ensaio – como aqueles dos livros de Guinzburg, dos quais eu sou fã – uma vez que minhas motivações para tal composição são tanto pessoais quanto profissionais. Preparo-me para submeter um projeto de mestrado onde pretendo trabalhar com identidade cultural e representação na guerra da Bósnia através da analise de dois álbuns em quadrinhos do Joe Sacco e do diário de Zlata Filipović – a menina que retratou o dia-a-dia de Sarajevo sitiada em seu diário, mais tarde editado em servo-croata pela UNICEF – tendo como fio condutor dessas narrativas o cotidiano.
As linhas que se seguem demonstram um pouco da problemática em torno da guerra, indo além da tradicional resposta ao conflito, de que este foi apenas ocasionado pelo desmembramento da antiga Iugoslávia e indo mais além até as raízes de um problema conceitual, o Oriente.

1.

Há uma antiga tradição no interior do Brasil chamada de “a procissão das almas” na qual, supostamente, os mortos deixam seus túmulos e vagam pela cidade em procissão a meia noite em ponto no dia de finados. Essa é uma lenda do folclore popular brasileiro, país de maioria católica localizado na America do Sul.
Não obstante a gigantesca distancia entre o interior do Brasil e o interior da Bósnia-Herzegovina, há um trágico fato que pode traçar um incrível paralelo entre essas duas culturas aparentemente tão distantes. O paralelo em questão é o dia 11 de julho de 1995, o local Srebrenica, o fato; “A procissão das almas”.
Há 16 anos a Bósnia faz o caminho inverso da já citada lenda, ao invés de seus mortos deixarem os túmulos são seus moradores que deixam suas casas e marcham, refazendo o trajeto de seus pais, mães, irmãos e irmãs que não mais estão presentes em suas vidas cotidianas. Essa marcha recebe o nome de “A marcha da Paz” e até rendeu um livro intitulado Da Rosa ao Pó: Histórias da Bósnia Pós-Genocídio, do jornalista Gustavo Silva.
Os 110 quilômetros da Marcha da Paz são percorridos por olhares vazios, vidas despedaçadas, futuros incertos e saudades, muitas saudades. Esta homenagem as mais de oito mil vitimas, que foram mortas, estupradas ou conduzidas a campos de trabalho forçados faz reacender um sentimento de dor e perplexidade.
A dor é de ter perdido em tão pouco tempo – entre os dias 11 de julho e 22 de julho de 1995 – mais de 8 mil vidas, a perplexidade é mais profunda e politicamente perturbadora. A Europa, esse patrimônio inviolável, detentor “único” da herança helênica, a Europa que se iluminou com as idéias, que se positivou para fundar a moderna sociologia, que se emancipou do poder despótico de reis e clérigos para fundar sua suposta ilha de paz e prosperidade.

2.

Como esse super continente que nos impõe culturalmente os modelos aceitáveis de subordinação e inferioridade – quando nos colonizou e nos destituiu de nossas riquezas, nossa cultura, nossa alteridade – conseguiu suportar esse – apenas mais um – genocídio em suas terras? Por que as tropas da ONU que estavam lá para defenderem os civis se omitiram do socorro? Como Karadžić e Mladić permaneceram tanto tempo livres?
Nós – o mundo não civilizado – não éramos economicamente viáveis aos modelos de desenvolvimento largamente difundidos pelos teóricos europeus, e por causa disso, supostamente, nós necessitávamos da dominação estrangeira, para que as luzes da cultura e civilidade européia nos redimissem da culpa de ser selvagem, estrangeiro, bárbaro, oriental. Edward Said, uma das mentes mais brilhantes do século XX, nos agraciou com um livro de importância capital para entender essas e outras questões acerca do trato da Europa aos não europeus.
Em sua principal obra “Orientalismo: O Oriente como invenção do Ocidente”, Said (2007) discute como a imagem do Oriente foi criada para representar aquilo que estava a leste das fronteiras do que se convencionou chamar de Europa. Essa imagem foi retratada por pintores, músicos, literatos e cientistas e reproduzida pela cultura erudita, popular e pela academia em toda a Europa Ocidental.
A imagem que foi instituída pela Europa, que se apropriou da denominação Ocidente para fazer um proposital contraponto a seu rival idealizado o Oriente, fora a de que o Oriente é uma terra mística, despótica, sensual e exótica, onde a coragem e bravura de qualquer oficial britânico ou inglês deveriam ser testadas. Sendo assim, o Oriente é, por convenção, representado como uma terra onde a violência impera, da qual os esforços para qualquer tipo de paz são em vão e onde os principais vilões aguardam sedentos de sangue por um novo conflito.
 O massacre de Srebrenica foi na melhor das hipóteses uma grande reportagem para o Ocidente. Essa reportagem consistia no relato fantástico de pessoas brancas, loiras, de olhos claros que viviam em parte do antigo mundo helênico, mas que por questões religiosas tanto das vítimas – bósnios muçulmanos – quanto de seus algozes – a religião majoritária da Sérvia é o cristianismo ortodoxo – foram vistos como uma continuação, na melhor das hipóteses, um mundo intermediário entre a Europa e o Oriente.
Hitler costumava dizer que os eslavos eram a grande sujeira da Europa, e em seu insano plano de dominação mundial, Hitler tinha encontrado um papel para os eslavos, a servidão, a escravidão. Na guerra da Bósnia e em especial no massacre de Srebrenica, os dirigentes das nações que unidas venceram o totalitarismo e salvaram do despotismo totalitário a Europa, foram ainda mais cruéis que Hitler, pois estas, simplesmente, ignoraram o massacre de mais de 8 mil civis no que geograficamente ainda é a Europa.

3.

Depois da guerra da Bósnia, houve ainda mais tensões étnicas nos Bálcãs, desta vez na região do Kosovo, área ao sul da Sérvia que lutou por emancipação desde o fim da Iugoslávia, chegando a tornar-se uma guerra em 1998 e que dez anos depois culminaria na independência deste pequeno país. Este conflito foi motivado por antigas querelas étnicas entre sérvios e albaneses que remontam a idade média.
Kosovo e em particular o vale de Melros é uma importante referencia para os eslavos de modo geral, mas igualmente aos albaneses e a todo o mundo balcânico, pois foi lá que em 28 de junho de 1389 que as tropas do sultão Murat venceram a coligação de reinos cristão-balcânicos e começaram o processo de “orientalização” da Europa Centro-Oriental. Nos três séculos seguintes os turcos otomanos iriam expandir seus dominós por toda a região chegando aos subúrbios de Viena, apesar que esta jamais fora dominada pelo Império Otomano.
Um dos maiores expoentes da literatura albanesa, Ismail Kadaré (1999), retratou a batalha do Kosovo em um de seus romances intitulado “Três Cantos Fúnebres para o Kosovo”. Estão retratadas em uma das três partes do livro as andanças dos rapsodos balcânicos que sobreviveram à ofensiva turca.
Esses caminham sem rumo, vagando para terras distantes sem terem mais para onde voltar. Uni-se a eles um jovem chamado Ibrahim, desertor do exercito turco que quer se converter ao cristianismo, mas não consegue abandonar a fé islâmica.
Ibrahim acompanha os rapsodos que vagam até terras aparentemente germânicas, sendo que em uma dessas cidades que eles chegam, o jovem Ibrahim é preso e condenado pela inquisição a morrer na fogueira pelo crime de heresia. Seu pecado foi ambicionar ter duas religiões ao mesmo tempo.No livro descreve como Ibrahim fora queimado vivo na fogueira e seu ultimo grito foi em latim, um sonoro NON! Uma inefável negação desse mundo.
A “maldição” de Ibrahim parece ter tomado o Ocidente nesse mundo pós queda das torres gêmeas. Há uma política velada de depreciação do Oriente e a intervenção militar em solo Oriental é o trunfo de alguns governos democráticos da atualidade.
O Ocidente é aonde a fé islâmica vêm nos últimos anos se multiplicando, muitos países da Europa Ocidental vem recebendo levas migratórias de indivíduos de países majoritariamente muçulmanos e as conversões são outro fator do crescimento deste credo na Europa.
No entanto, nos Bálcãs, onde as três religiões coabitam há pelo menos quinhentos anos, justamente lá onde o Ocidente beija o Oriente, Ibrahim em sua indecisão profetizou o que os descendentes dos colegas rapsodos iriam fazer uns com os outros.

4.

A Marcha da Paz chega ao monumento em homenagem as vítimas do massacre de Srebrenica. De tempos em tempos se encontram novas valas comuns e os corpos são transladados para o cemitério onde serão sepultados.
É um costume muçulmano colocarem mantos verdes sobre os caixões, nesses mantos geralmente estão bordados em dourado alguns trechos do Alcorão em árabe. A língua oficial da Bósnia é uma variação do servo-croata, chamada língua bósnia.
Contudo, é o chamado para oração – canção em forma de lamento – do muezzin e a recitação de trechos do Alcorão em árabe que compõem a sinfonia de vozes da marcha. Depois de prestadas todas as homenagens, as milhares de pessoas presentes retornam para suas casa em várias cidades da Bósnia.
Porem, a Bósnia que estes sobreviventes da guerra percorrem não é mais a Bósnia histórica, modelo de tolerância e coexistência de distintos grupos étnicos e religiosos. A antiga Bósnia multi-étnica já não existe mais, agora há apenas faixas étnicas que separam croatas, bósnios e sérvios.
A incapacidade de unir os interesses desses três grupos étnicos se reflete na política, onde a presidência é divida entre três representantes um de cada grupo étnico. A própria seleção de futebol foi penalizada pela Fifa, pelo órgão máximo do futebol internacional, cada time pode ter apenas um presidente, e não três como propunham os dirigentes da seleção da Bósnia.
Já é noite e a maioria dos participantes da Marcha pela Paz já estão em suas casas, porém alguém esta faltando, alguém ficou no monumento, difícil precisar que não regressou das 8.732 vítimas de um onze de julho qualquer. Talvez um pai que deu uma pista falsa na floresta para salvar seu filho, um irmão que ficou de fora da lista de trabalhadores do exercito de monitoramento da ONU, em missão de paz.
Esses corpos franzinos, estes rostos tristes hoje de alguma forma se juntaram a Marcha da Paz. Foram lembrados, foram “chorados”, alguém recuperou sua humanidade destituída tanto por seus algozes que perpetraram a maior limpeza étnica em solo europeu depois da Segunda Guerra Mundial quanto pelo Ocidente civilizado que virou as costas aos muçulmanos bósnios de Srebrenica dizendo-os: “Vocês estão fora de nossa jurisdição!”
Radamés Rodrigues Neto
Criciúma, Brasil. 11de julho de 2011

Referências Bibliográficas:

KADARÉ, Ismail. Três Cantos Fúnebres para o Kosovo. Traduzido por Vera Lucia do Reis. Rio de Janeiro: Objetiva, 1999. 116p

SAID. Edward W. Orientalismo: O oriente como invenção do ocidente. Traduzido por Rosaura Eichenberg. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. 523p.

SILVA, Gustavo. Da rosa ao pó: Histórias da Bósnia pós-genocidio. Rio de Janeiro: Tinta Negra, 2011. 199p.